LISBOA – AGENCIA CONGRESSO – Por Luiz Piauhylino Filho – O texto a seguir propõe uma análise da violência estatal e paraestatal no Brasil, argumentando que as dinâmicas atuais nas periferias urbanas são um desdobramento moderno de lógicas de poder estabelecidas no “coronelismo” do início do século XX.
1. Continuidade Histórica: Do Coronelismo Clássico ao “Neocoronelismo
Urbano”. Ontem (1910–1930): O Coronelismo Sertanejo – No sertão, o coronel legislava de facto. O Estado formal era uma ficção distante, e quem administrava a justiça, distribuía favores e aplicava punições eram os senhores de terra.
A polícia, quando presente, funcionava como o braço armado privado desses poderosos, garantindo a ordem da propriedade, não a ordem pública.
Aos despossuídos restavam poucas opções: a submissão clientelista ou a insurgência. O cangaço emergiu como uma resposta social e armada a essa estrutura de opressão local, à miséria imposta e à ausência total de mediação estatal.
O cangaceiro foi um “produto social” da captura privada do poder público e da
incapacidade do Estado em garantir o mínimo de justiça. Hoje (2020–2025): O Coronelismo Urbano Nas periferias das grandes cidades — com o Rio de Janeiro como seu laboratório mais trágico — observamos um fenômeno análogo, embora com novos atores:
• O Estado Social está Ausente: Falha cronicamente em prover serviços básicos (educação, saúde, saneamento, oportunidades de futuro).
• O Estado Armado está Presente: Manifesta-se através de uma polícia que, frequentemente, atua não como garantidora de direitos, mas como força de contenção territorial dos “indesejados”.
• O Vácuo Institucional: Nesse vácuo, surgem os novos “coronéis” — milícias, facções e políticos locais que controlam territórios, impõem leis próprias, exploram a população e gerem a violência como recurso de poder.
O sertão de 1930 e as favelas de 2025 são cenários distintos, mas regidos por
uma lógica idêntica de poder paraestatal: o abandono institucional que permite
o surgimento de soberanias paralelas onde a vida humana tem valor precário.
O Estado como “Senhor da Morte”: A Necropolítica Brasileira. O filósofo Achille Mbembe define necropolítica como o exercício do poder estatal que decide, ativamente, quem pode viver e quem deve morrer. No Brasil, essa tese não é uma abstração, mas uma prática de segurança pública:
• As operações policiais em favelas são, por definição, militarizadas, muitas vezes carecendo de controle judicial ou de respeito aos protocolos mínimos, resultando em índices inaceitáveis de mortes de civis.
• A justificativa oficial é a “guerra às drogas” ou o combate ao crime — uma
retórica belicosa idêntica à usada no sertão contra “bandidos e cangaceiros”.
• Contudo, o padrão das vítimas é claro: são majoritariamente jovens, negros e pobres, habitantes de territórios negligenciados pelo próprio Estado que diz querer “libertá-los”.
Assim como no tempo de Lampião, a violência letal do Estado atinge preferencialmente aqueles a quem ele nunca ofereceu cidadania. As chacinas recorrentes não são “efeitos colaterais” ou “acidentes operacionais”; são sintomas estruturais de um Estado que substituiu a mediação social pela força bruta.
O Ciclo da Violência: Da Reação à Legitimação Social – No passado, o cangaço foi também uma reação à violência institucionalizada: à injustiça social, à arbitrariedade policial e à exploração econômica.

Hoje, a entrada de muitos jovens no tráfico ou nas milícias obedece a mecanismos históricos semelhantes:
• A ausência absoluta de perspectivas e oportunidades.
• A opressão policial cotidiana, vista como humilhação e violência.
• A promessa de poder, respeito e pertencimento que o crime organizado oferece.
O aspecto mais trágico deste ciclo é a sua legitimação por parte da sociedade. O senso comum que repete “bandido bom é bandido morto” é o herdeiro direto da mentalidade que aplaudiu a exibição pública das cabeças decapitadas de cangaceiros em 1938, validando o espetáculo da barbárie estatal como “justiça”.
O Fio que Não se Rompeu: Uma Comparação Estrutural – 1930 – Sertão 2025 – Rio de Janeiro – Dimensão – Poder Local – Coronéis jagunços e Milícias, facções e políticos locais.
Ausência Estado Falta de justiça e serviços públicos de direitos, escolas e segurança cidadã.
Violência Legitimada. Caça aos “bandoleiros” (justiça privada).
Operações de “guerra às drogas” (violência estatal) Reação/Adaptação Cangaço (resistência/crime armado). Facções/Milícias (domínio/crime armado) Símbolo Barbárie
da Cabeças expostas de Lampião e Maria Bonita. Corpos amontoados e “autos de resistência”.
Em ambos os casos, o Estado falha como mediador social e afirma-se como
executor da violência seletiva. A República Inacabada. O episódio de 1938 e as chacinas de 2025 revelam o mesmo problema de fundo:
O Brasil ainda não realizou seu pacto republicano fundamental — aquele que
transforma súditos em cidadãos plenos e que estabelece um Estado cuja função
primária é proteger os vulneráveis, e não puni-los pela sua vulnerabilidade.
Caminhos para Romper o Ciclo
A crítica histórica só tem valor se iluminar caminhos futuros. Se o diagnóstico é
a repetição de um ciclo baseado na ausência social e na presença bélica do
Estado, a solução não pode ser a intensificação dessa lógica.

A superação do “neocoronelismo” exige uma inversão de prioridades:
1. Inteligência sobre Força Bruta: A política de segurança pública não
pode ser sinônimo de operações de incursão territorial, que apenas
enxugam gelo e aterrorizam moradores.
É preciso focar na inteligência financeira e investigativa para desarticular as cúpulas do crime (incluindo milícias e seus braços políticos), bloquear rotas de lavagem de dinheiro e apreender o armamento pesado antes que ele chegue ao território.
2. Ocupação Social, não Militar: O vácuo institucional que permite o surgimento de poderes paralelos não se preenche com fuzis, mas com serviços. A presença estatal deve ser sinônimo de escolas de tempo integral, postos de saúde funcionais, saneamento básico,
equipamentos culturais e oportunidades de emprego. A polícia deve ser o último recurso da mediação estatal, não o primeiro (e único).
3. Refundação Republicana da Polícia: É imperativo que o Estado trate o
habitante da favela não como “inimigo interno” a ser combatido, mas como
cidadão pleno de direitos.
Isso exige o fim da lógica militarizada, o controle externo rigoroso da atividade policial, a valorização do bom profissional e a punição exemplar de desvios e execuções — substituindo a “necropolítica” pela política da vida.
Enquanto a polícia continuar a substituir as políticas sociais, e o Estado delegar
poder letal a forças sem controle democrático, a análise de 1930 não será
história; será apenas o prefácio para 2030. A mudança é uma escolha política
estrutural.
Luiz Piauhylino Filho é advogado brasileiro radicado em Portugal

































